domingo, 18 de julho de 2010

Um carro, uma estrada e um chalé

Completei 26 anos mês passado, e minha namorada nos presenteou com uma viagem a uma pousadinha em Socorro, no Circuito das Águas, interior paulista, dali duas semanas. Cidade escolhida, chalé escolhido, data escolhida: faltava apenas decidir qual carro nos levaria e por quais estradas.

Recorri ao Google Maps para avaliar os possíveis caminhos, não sem antes verificar o sugerido pelo site da pousada. Resultado: um caminho bem mais curto e rápido pela Rodovia Fernão Dias até Bragança Paulista e depois pela Rodovia Capitão Barduíno até Socorro. Cheguei a pensar em ir pelas rodovias dos Bandeirantes e Anhanguera, seguindo pela Adhemar de Barros, e depois seguindo até Lindóia e então Socorro, caminho que eu conheço muito bem e que faço pra ir ao Encontro Paulista de Automóveis Antigos, em Águas de Lindóia. Este caminho, muito mais longo, me atraía em função da conservação exemplar (e áreas de escape) em todos os trechos, e quando se viaja com um carro antigo isto adquire um peso ainda maior, mesmo que seja necessário pagar diversos pedágios.

Na última vez que eu trafegara pela Rodovia Fernão Dias para além de Mairiporã a rodovia inteira estava mal conservada, com o asfalto bem ruim, e realmente colocava em risco a segurança dos viajantes. Em função disso, perguntei a alguns amigos se algum deles trafegara recentemente por ela, mas não tive nenhuma resposta conclusiva; ninguém sabia ao certo o estado atual da rodovia.

Desde quando soube que iríamos viajar pensei em irmos com meu xodó, um Escort XR3 Conversível 1988 amarelo que pertenceu ao meu avô e há alguns anos é meu. Ironicamente, ele é mais velho que a minha namorada, mas apesar da idade apresenta uma confiabilidade mecânica só conseguida em carros utilizados com freqüência. Pra mim, carros foram feitos para andar, e não há nada mais glorioso para um automóvel do que ser utilizado em sua plenitude no ambiente para o qual foi pensado. No caso, uma estrada bem pavimentada. O carro é original a álcool e está bem conservado, com tudo funcionando, inclusive o ar condicionado e vidros e travas elétricos, todos originais de fábrica. Até o problemático check-control, central eletrônica que concentra os avisos de nível baixo de fluidos do lavador de pára-brisas, arrefecimento, partida a frio, tanque de combustível e o sensor de desgaste das pastilhas de freio, funciona. De não original, apenas um rádio moderno (o original está guardado e em perfeito estado) e o alarme que eu instalei (coisas do Brasil).
Apesar de confiar no carro e adorar viajar sem um teto sobre a cabeça, gosto este felizmente compartilhado pela patroa, conheço muito bem suas limitações. E a principal é a falta de aptidão para estradas não pavimentadas. E são dois os motivos: pequena altura livre do solo e elevada torção da carroceria. E esta falta de aptidão foi determinante na escolha do carro que nos acompanharia nesta breve jornada: o Clio da minha companheira de viagem.

O Renault Clio em questão é um Hi-Flex ano/modelo 2008, em sua configuração básica, com três portas, com pouco mais de 35 mil quilômetros rodados. Básico porém com ar quente e limpador e desembaçador do vigia traseiro, nem sempre presentes em carros dessa categoria. Já o dirigira algumas vezes aqui em São Paulo e por duas vezes em estradas, ambas em trechos mais curtos e com o carro lotado, onde não foi possível fazer uma avaliação justa do carro. Apenas constatei o óbvio, que o espaço interno é limitado para cinco ocupantes, que o acesso ao banco traseiro é difícil e que o motor de um litro de deslocamento e naturalmente aspirado sofre com a elevada massa que é obrigado a carregar nessas condições.
Para a curta viagem em questão, com apenas dois ocupantes e não muita bagagem, o espaço interno é mais do que satisfatório. O porta-malas, dentro da média da categoria e com fácil acesso, não foi suficiente para todas as tralhas que levamos, dentre elas casacos grossos e até um volumoso cobertor, já que a pousada disponibiliza apenas um por chalé e imaginamos que iríamos passar frio. Dei preferência a ter plena visão traseira, ou seja, não ocupei o espaço sobre o tampão traseiro e coloquei as bagagens que não couberam no porta-malas no banco traseiro, prendendo-as com os cintos de segurança. Não, não foi por medo que elas se ferissem em um eventual acidente, mas para que elas não ficassem soltas, se movendo em alguma freada ou em curvas.

Bagagens resolvidas, vamos aos ocupantes. Os bancos dianteiros são confortáveis, apesar do tecido simples, e contam com razoável apoio lateral, e o espaço interno na dianteira é bom. Sinto falta de regulagem de altura do banco do motorista e de regulagem de altura e profundidade do volante, o que me faz sentar em posição muito elevada, já que tenho mais de 1,8 metro de altura, mas a ergonomia ainda é superior à de Palio, Celta, Corsa e Gol pré-modelo novo, este ainda vendido na versão básica. Péssima só a posição dos botões do vidro elétrico no console central, próximos ao painel, o que obriga os ocupantes a afastar as costas do encosto do banco para acioná-los. Falha grave, mas já corrigida nas versões com vidros elétricos de série. Chega a dar saudades dos comandos do conterrâneo Peugeot 206/7, estes também no console central mas em posição bem mais recuada, próximos à alavanca de freio de mão, muito mais práticos, mas ainda assim menos práticos que a posição que considero ideal, nos painéis de porta, próximos ao apoio de braço.
Sexta-feira, quatorze horas. Pendrive espetado no rádio Sony, recheado com 8Gb de músicas, suficientes pra não repetir uma música sequer durante toda a viagem. Pegamos um pouco de trânsito pra sair de Sampa e entramos na estrada. Ah, sim, decidi ir pela Fernão Dias, já que não li nenhuma crítica muito aguda ao estado atual dela e o Clio me dava tranqüilidade para enfrentar algum eventual problema de conservação na via. Mas fui surpreendido positivamente pelas condições da rodovia, que apesar de estar longe da qualidade da Bandeirantes ou da Imigrantes não traz nenhum problema grave. Saio da Fernão Dias em Bragança e sou forçado a atravessar a cidade para acessar a outra estrada, também em bom estado, mas de pista simples. Sigo viagem com tranqüilidade, apesar de sempre um pouco acima do baixo limite de velocidade da via, tomando cuidado com radares. O motor flex abastecido com álcool permite ultrapassagens tranqüilas em descidas ou em trechos planos, e só fica nítida a falta de força em subidas. O torque e potência máximos (10,2kgfm e 77cv, respectivamente) chegam somente em altas rotações (4250 e 6000rpm), faixa de giro em que o motor é mais áspero e o ruído na cabine chega a incomodar um pouco.

O carrinho enfrenta as curvas e a minha falta de moderação no pedal do acelerador como gente grande, ficando sempre a mão e transmitindo segurança. Minha namorada (e dona do carro) nem reclama do modo como dirijo e da avaliação até então velada que realizo. A calibração de suspensão consegue um bom compromisso entre conforto e desempenho, utilizando rodas de 14 polegadas de diâmetro calçadas com pneus 175/65. Pontos para o francesinho. Sigo as ordens do GPS e saio desta para uma estradinha vicinal onde se encontra a pousada. Asfalto recém-recapeado, muito bem feito, sem nenhum “bump” ou desnível e cheia de curvinhas, muito gostosa de transpor. Bate um arrependimento por não ter ido com o Escort, aproveitado a estrada em um descapotável em ótima companhia e vislumbrando possíveis passeios noturnos, meus favoritos, com o céu estrelado sobre nossas cabeças.
Chegamos à pousada. Parte do meu arrependimento passa ao ver o esburacado caminho que leva à recepção e posteriormente ao chalé. Ainda seria viável ir com meu amarelinho, penso; seria só passar bem devagar, com cuidado. Instalamo-nos no chalé, muito agradável, por sinal. Após um repouso e um bom banho, saímos para jantar. O recepcionista não sabia informar sobre restaurantes na cidade, apenas ofereceu alguns catálogos de delivery. Resolvemos então seguir a dica de uma colega de trabalho da patroa: uma lanchonete no centro que, segundo ela, tinha o melhor hot dog que ela já comera. Passamos em frente a ela e resolvemos dar uma volta pelo centro, conhecer a cidade e procurar alguma alternativa. Voltamos à lanchonete recomendada, de aparência simples, um dos pouquíssimos estabelecimentos abertos na cidade após as 20 horas. Como considero que aparência sozinha não significa nada e o local era limpo e bem organizado, encaramos. Sinto pena da colega que nunca comeu um hot dog melhor do que aquele, servido em pão de hamburger e longe, muito longe, de ser memorável. Medíocre, se for. Melhor escolha faço ao pedir uma porção de fritas para acompanhar, muito bem servida. Voltamos ao hotel e começamos a planejar o dia seguinte.
Acordamos relativamente cedo, com frio mesmo com as duas cobertas. Frio, aliás, muito mais presente na parte da manhã do que na noite. Um bom café da manhã nos aguarda numa cesta sobre uma mesa na parte externa do chalé. Café e banho tomados, seguimos para a Gruta do Anjo, que fica no terreno da pousada e dá nome à esta. A gruta era, na verdade, uma mina de Quartzo, Feldspato e Granito desativada desde 1995, cuja entrada é um corte amplo no morro e não exige que desçamos ou atravessemos fendas estreitas. Com o passar dos anos, a água que brotou do morro forrado de vegetação formou um lago de água cristalina, filtrada pelas rochas, com mais de 4 metros de profundidade, por onde é possível andar de pedalinho, este o único acesso à parte de trás da gruta. Vale a visita, apesar de o guia mostrar insistentemente imagens pouco verossímeis formadas pelas rochas, entre elas um anjo, motivo do nome dado à gruta.
Saímos dela dispostos a ir até um parque privado cujo folheto no chalé anuncia diversos esportes radicais. Na recepção somos informados que há um parque, também privado, que é melhor e mais completo que o do folheto. Fomos a ele; ou ao menos tentamos.

Seguimos pela estradinha vicinal no sentido oposto ao da rodovia, seguindo placas para a região do parque indicado. Seguindo-as, caímos numa estrada de terra batida, estreita e um pouco esburacada. Alguns quilômetros de buracos e placas confusas depois, percebo que o parque não é mesmo praquele lado, mas passo a seguir placas para um mirante (“já que estamos aqui...”).
Mais alguns quilômetros de sítios, vacas, mata-burros e muita bosta na estrada e chegamos com o valente Clio ao tal mirante. Para nossa surpresa, encontramos vários carros (todos picapes médias, SUV’s ou Jipes) estacionados lá. O mirante é um ponto de onde partem asas-delta, e que permite uma vista ampla da região, e o clima aberto colabora para uma linda vista. Algumas fotos e colocamos o carro de volta na estrada. Nessa hora, já tenho certeza de ter feito a escolha certa ao preterir o Escort ao Clio para a empreitada.
O francesinho se comportou surpreendente bem na estrada não pavimentada, encarando com valentia terrenos bem esburacados, sem raspar o assoalho ou os parachoques, e suportando meu pé pesado. Os enormes vidros das portas fazem barulho em terrenos irregulares e rangem para subir ou descer, mas isso não é um demérito ao carro uma vez que os vidros elétricos foram instalados após a compra dele, juntamente com o alarme, e portanto não são os mecanismos pelos quais a fábrica teria responsabilidade. A visibilidade é boa e, mesmo após algumas horas ao volante, a posição de dirigir não chega a cansar.

Ponto negativo para a incapacidade do carro em enfrentar subidas íngremes em segunda marcha, mesmo vazio, me obrigando a recorrer à primeira marcha freqüentemente e a tolerar a elevada rotação necessária para se ter uma velocidade minimamente razoável. Rotação, aliás, que eu não posso precisar, já que o painel não dispõe de conta-giros, equipamento que faz falta em um carro onde é necessário um bom aproveitamento do motor e saber a rotação deste seria de grande valia. Outro senão é o trambulador que ainda utiliza varões, que se não comprometem muito o manuseio da alavanca (ainda mais para quem está acostumado com a imprecisão de um Escort que utiliza o mesmo sistema), provoca vibração excessiva desta e chegou, em um trecho de terra mais irregular, a fazer com que a marcha escapasse, mas foi um caso isolado em uma condição bem diferente da ideal.
Encaramos o mesmo percurso de terra no sentido contrário e chegamos de volta ao asfalto. Seguimos mais poucos quilômetros pra longe da pousada e finalmente nos encaminhamos para o parque, desta vez pelo caminho certo. Novamente estrada de terra batida, mas desta vez com placas claras mostrando a distância a percorrer. Mais alguns quilômetros e chegamos à portaria do Parque dos Sonhos. Estacionamos, preenchemos um termo de responsabilidade, pegamos um mapa do parque e aproveitamos as trilhas no meio da mata, quedas d’água e grutas (estas naturais mas minúsculas) pelo resto da manhã até o meio da tarde, quando finalmente paramos para comer um lanche. Passamos na lojinha de lembranças e voltamos ao nosso agora imundo Renault.
Voltamos à pousada, descansamos um pouco e nos preparamos para o jantar. Por falta de opção em Socorro, pegamos a estrada rumo a Águas de Lindóia em busca de um fondue. Estrada de pista simples, sinuosa e bem pavimentada; um deleite para um entusiasta. E o francesinho não me decepciona, encara as curvas com desenvoltura novamente, e me mostra uma característica que nunca tinha se destacado antes: um excelente farol, tanto no facho alto quanto baixo, de fazer inveja a carros de preço bem mais elevado. Transmite total segurança no breu da estrada, sem pontos escuros e com o asfalto iluminado desde a parte mais próxima ao carro, do ponto de visão do condutor, e com bom alcance. Louvável. Excelente, também, é a iluminação do painel de instrumentos.

Passeamos por uma Águas de Lindóia tranqüila, bem diferente da época do evento de autos antigos. Restaurante escolhido, prato já pré-escolhido. Fondue já no estômago e caminho de volta rumo ao nosso chalé.

Domingo, dia de voltar pra Sampa. Acordamos, café da manhã, banho, malas refeitas. Carro cheio, estadia paga, passamos pra conhecer o centro de Socorro à luz do dia. Nada demais. Seguimos para dois shoppings de lojas de fábricas de malhas na estrada rumo a Lindóia, mas ainda em Socorro, para comprar algumas lembranças e eventualmente alguma roupa. Uma hora depois, poucas compras nas fracas lojas, e seguimos de volta pra casa.

Era dia de Brasil versus Costa do marfim, 15:30 horas. Assistiríamos ao jogo na casa de um amigo no Jardim Anália Franco, bairro de fácil acesso vindo pela Fernão Dias. Pegamos a rodovia rumo a Bragança. Alguns poucos carros, caminho tranqüilo. Atravessamos a cidade e entramos na Fernão Dias. Esta está bem mais cheia, mas ainda sem trânsito. O Cliozinho vai bem, mas em velocidades muito elevadas ele não transmite tanta segurança nas curvas, apesar de não ter dado nenhum susto significativo. Cruzamos com muitos motoristas extremamente irresponsáveis, que por mérito meu e de alguns outros motoristas não provocaram acidentes sérios. Irresponsabilidade braba, provavelmente fomentada pela pressa para chegar a algum lugar para assistir ao jogo. Chegamos aliviados à casa do meu amigo, e ainda a tempo de ouvir o Hino Nacional na TV. Estávamos de volta.
O Clio se mostrou um bom companheiro de viagem. Volante de boa empunhadura e diâmetro, posição de dirigir mais confortável que a do Corolla 2004, carro algumas categorias acima e que é o que mais dirijo. O motor, apesar de áspero em altas rotações talvez em função da baixa taxa de compressão (10:1) para álcool, e com torque e potência típicos de propulsores de um litro, se mostrou suficiente para uma viagem curta em casal. Vale observar que em casa mora também um Peugeot 206 com motor de 1 litro e 16 válvulas de origem Renault, só a gasolina, e que apresenta um comportamento bem diferente desse: demonstra muito mais vontade de girar, mas entrega menos torque principalmente em baixas rotações, exigindo sempre que se trabalhe em rotações elevadas para obter um desempenho satisfatório, tornando o carro menos agradável para ser conduzido na cidade mas mais empolgante na estrada. A ausência de assistência na direção faz muito pouca falta, só é percebida mesmo na hora de manobras apertadas, tanto que nem citei o fato até agora. O ar condicionado não fez falta em função do frio e da presença de aquecimento, mas em outras ocasiões sua ausência é sentida. Ambas as ausências contribuem para a boa impressão do desempenho em baixa rotação quando comparado ao supracitado Peugeot, equipado com esses itens e mais de 100kg mais pesado.

O acabamento se mostrou superior à média da categoria, sem rangidos ou encaixes malfeitos e com texturas que demonstram cuidado do fabricante e painel em duas cores, agradável mas com desenho bem desatualizado. O painel de porta não traz tecido, disponível apenas nas versões superiores. Faz falta um porta-copos de verdade, já que os buracos na parte interna da tampa do porta-luvas destinados para este fim servem para, no máximo, apoiar copos pequenos com o carro estacionado.
Apesar de alguns poréns, o Clio é, ao lado do Peugeot 207, o carro que mais me empolga na categoria de entrada, e faz valer cada centavo gasto. Atende muito bem às necessidades de alguém solteiro, a um casal sem filhos ou até como segundo/terceiro/quarto carro da família, onde o espaço no banco traseiro não é um item importante. Se o desenho não empolga nem traz novidades, está longe de ser desagradável, ainda mais quando comparado aos concorrentes diretos.
Foram 448 km no total, sempre comigo ao volante, sem abastecer graças ao tanque de 50 litros e ao apetite moderado (do carro), e sem pagar nenhum pedágio, fato notável no Estado de São Paulo, mas que não deve se repetir: já estava em fase avançada de construção uma praça de pedágio na Fernão Dias, na altura de Mairiporã.

Um final de semana para ser repetido, e cuja relação diversão/custo é excelente. Palmas pra escolha feita pela patroa. E se o hot dog não foi memorável, a viagem certamente foi.